(Contemporâneo)
Sunday, December 20, 2009
Saturday, December 12, 2009
Texto e fotos da tertulia sobre a Magia em Fernando Pessoa com Pedro Basto de Almeida
Com a presença do Vice Presidente da Câmara Muncipal de Alenquer, Dr. João Hermínio, decorreu com o habitual sucesso e agrado geral a última Tertúlia no Bar do Além, do ano de 2009 num almoço debate com cerca de 50 participantes já em ambiente de Natal.
Fica aqui o registo das fotos e do texto de apoio de Pedro Basto de Almeida...
Tertúlia do Bar do Além
Fernando Pessoa e a Alta Magia
- subsídios para a história da Magia em Portugal -
Alenquer – 12 de Dezembro de 2009
Apresentação:
Voltamos a ter o prazer de tomar parte, como oradores, numa sessão da Tertúlia do Bar do Além, pela terceira aqui vindo dar conta da evolução das nossas investigações acerca do percurso ocultista e esotérico de Fernando Pessoa.
De facto, já em 11 de Dezembro de 2004, a propósito dos contactos entre Pessoa e Crowley, e em 8 de Dezembro de 2006, sobre a biblioteca esotérica de Fernando Pessoa, beneficiámos do debate nesta tertúlia para fazer ponto de situação e obter contributos da maior utilidade para delinear os passos seguintes destes nossos estudos.
Gostaríamos de proporcionar, com esta nossa intervenção, um verdadeiro ambiente de tertúlia, pois pretendemos antes de mais lançar, na medida do possível, tópicos para debate entre todos os presentes, esperando que o tema que vos trazemos seja suficientemente motivador da discussão e, igualmente, que as vossas intervenções possam constituir estimulo e crítica para o nosso trabalho de investigação.
Para os que ainda não nos conhecem, importa que apresentemos o GIFI – Associação Portuguesa para a Investigação. A nossa associação, que celebrou o seu trigésimo terceiro aniversário no passado mês de Dezembro de 2009, tem como missão o trabalho nas “fronteiras da ciência”, no sentido de termos em vista a realização de investigação nos limites (ou para além do limite) dos conhecimentos científicos actuais. Também recorremos à expressão “limites do conhecimento”, pelo facto de nos nossos estudos nos movermos em terrenos propícios à crença, quer num sentido religioso ou espiritual, quer no que costumamos definir como “crença na ciência”.
Não se trata de pretendermos colocar em causa, criticar ou escrutinar crenças alheias que, antes de mais, respeitamos, mas sim de afastar, tanto quanto possível, as nossas próprias crenças individuais do processo de raciocínio desenvolvido durante investigação. É, certamente, uma vantagem para esse processo de objectivação de raciocínio o facto de no GIFI trabalharmos normalmente em grupo.
A investigação acerca de Fernando Pessoa, no entanto, tem sido essencialmente um esforço de carácter pessoal, razão adicional para me submeter ao espírito crítico, bem informado, dos membros desta tertúlia.
De outro ponto de vista, com os limites e a prudência adequados, as crenças em si próprias consideradas têm sido objecto relevante do nosso estudo. Já o combate à “crença na ciência” e à “pseudo-ciência” constitui um dos nossos objectivos principais, na medida em que nos parece ser actualmente uma das mais sérias violações do genuíno conhecimento humano. Manifestamo-nos, assim, contra a tentação positivista de procurar tudo explicar através da ciência, mesmo quando se deveria assumir, no mais puro espírito científico, a nossa ignorância, mas recusamos também todas as formas de proselitismo malevolamente encoberto por vestes académicas ou similares.
Magia
A palavra “magia” desperta nas nossas mentes ocidentais, do início do século XXI, um conjunto quase-anárquico, de referenciais, da bruxa do meio rural aos feiticeiros dos contos para crianças, do ilusionista mediático aos sofisticados neo-paganistas, do espectador da “magia do cinema” aos fiéis dos cultos sincréticos afro-brasileiros, do esoterista que procura tornar-se o “Homem-Deus” ao necessitado que se encomenda ao Criador através dos “ex-votos”.
É, de facto, muito difícil encontrar uma definição final e absoluta de magia. Talvez seja até melhor assim, pois parece que não haverá apenas uma magia, mas sim várias formas de culto, ritual, religião, espiritualidade, esoterismo, ocultismo que poderemos enquadrar ou cruzar com esta expressão.
Devemos, de toda a forma, adiantar algumas pistas.
Refere Mircea Eliade que no âmbito do Zoroastrismo os Magos eram a “Classe de sacerdotes dos antigos Medos. Presidiam aos sacrifícios e expunham os cadáveres às aves de rapina e às intempéries. No mundo helenístico os Magos terão a reputação de serem depositários de uma sabedoria oculta”.
Para P. G. Maxwell-Stuart, numa tradução livre da nossa lavra, magia pode ser definida, de forma sumária como a “crença em que os seres humanos são capazes de controlar, coagir e manipular as forças ocultas da criação, quaisquer que estas sejam, através de técnicas rituais.”, sublinhando ainda que os três principais objectivos da magia são “contactar forças superiores, sejam estas divinas, naturais ou demoníacas; exercer poder para além do que as suas capacidades naturais poderiam usualmente possibilitar; e usar esse poder tanto em seu próprio benefício, como para benefício de outros ou ainda para satisfazer um impulso maligno, seja este próprio ou emanado de outra pessoa”.
Na colectânea de textos organizada pelo referido P. G. Maxwell-Stuart, da qual constam as passagens que acabámos de transcrever, é apresentado4 um excerto de uma obra do jesuíta e inquisidor português Benito Pereira (numa obra de 1591, “Adversus Fallaces et Supertitiosas Artes”), na qual este distingue a “Magia Natural, na qual maravilhas são criadas pelos artifícios individuais de certas pessoas, que fazem uso de coisas naturais.” e a “Magia Não-Natural que invoca espíritos maus e usa o seu poder para as suas operações” a qual pode ser subdividida em “Teurgia, Goetia e Necromancia”. Ainda na mesma obra, o compilador dos textos assiná-la, a nosso ver correctamente, que “A feitiçaria é uma forma de magia e as feiticeiras são quem executa a feitiçaria.”. Repare-se, feitiçaria no sentido da palavra inglesa “witchcraft”, que nos remete para a actualmente tão em voga “wicca”.
Parece também claro que Magia e Kabbalah se encontram intimamente relacionadas, no âmbito do que poderemos definir como o esoterismo ocidental. A este propósito, sintetiza P. G. Maxwell-Stuart (em nossa tradução livre) “A palavra “Kabbalah” deriva do hebreu qabbalah significando “tradição”. Há várias formas pelas quais pode ser soletrada: “Cabala” é uma outra”. Kabbalah é a técnica de ler e interpretar a Bíblia, especialmente o Pentateuco...” “... também envolve o conceito chave do que é conhecido como a “Árvore da Vida”, uma estrutura simbólica constituída por dez emanações do divino, com dez nomes, atributos, poderes e diversos caminhos entre si, todos expressando uma noção de Deus em mundos ou planos sucessivamente mais elevados.
A contemplação destas emanações, ou Sephiroth, conduz não apenas a um maior entendimento da natureza de Deus, que, em contrapartida, conduz o Kabbalista cada vez mais perto de uma visão de Deus ele mesmo, mas também a um mais detalhado conhecimento das diferentes formas nas quais os poderes divinos operam através dos vários mundos. Este conhecimento pode ser utilizado pois os nomes que o sujeito encontra no decurso da sua contemplação são nomes de poder e a habilidade para reconhecer e manipular estes nomes concede uma imensa e potente autoridade à pessoa que tenha dominado esta técnica. A importância da Kabbalah para a magia, em consequência, dificilmente pode ser exageradamente afirmada.”.
Já para William Wynn Westcott, um dos fundadores da Ordem Hermética da Aurora Dourada (Hermetic Order of the Golden Dawn), maçon dos mais ilustres, membro da Sociedade Teosófica e Mago Supremo da SRIA (Societas Rosacruciana in Anglia), “A Alta Magia do verdadeiro rosa-cruz é o conhecimento de como perceber, com os poderes mentais do homem inferior, os reflexos irradiados pelo homem espiritual para guiá-lo e instruí-lo.” ou, em resumo “... a Sabedoria Espiritual é a verdadeira Alta Magia...” .
De forma bem mais sumária e com refinado sentido de humor, Aleister Crowley no seu artigo “The revival of Magick” refere-se à magia – que denomina “Magick” – dizendo que a mesma “... pode ser definida para o nosso presente propósito como a arte de comunicar sem meios óbvios.”
E Pessoa, nos seus múltiplos escritos e reflexos, muitos dos quais sobre matéria espiritual e esotérica, falou ele próprio acerca da magia ? Com base nas recolhas realizadas no espólio pessoano, Yvette K. Centeno transcreve a seguinte passagem do texto “A Ordem do Subsolo” (espólio 54-97):
“Se esses ensinamentos occultos são verdadeiros, ou apenas especulações abstrusas, é outro problema. Se os hierophantes do occulto teem, na verdade, maior conhecimento da verdade pura do que nós profanos, que a buscamos, se a buscamos com a leitura, ou a meditação, ou a inteligência discursiva e dialéctica – não o podemos nós saber. Tudo isso pode ser sinceramente criado pelos iniciados e ser falso. O occulto pode ter hallucinações próprias, enganos seus.
Seja como for, o certo é que os ensinamentos ministrados nos mysterios abrangem três ordens de coisas: 1) a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte, 2) a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las, e 3) a verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da creação do mundo. São, respectivamente, o segredo alchimico, o segredo magico, e o segredo mystico.”
A mesma autora dá-nos ainda a conhecer10 esta outra passagem (espólio 54-33/37): “A obra de magia contém trez elementos, ou antes são trez as obras de magia: 1) o conhecimento e conversação do Santo Anjo da Guarda, 2) o conhecimento (atravez d’elle) dos Deuses acima d’elle, regentes do Seu mundo, 3) o uso ou auxílio d’esses Deuses nas operações sobre nós e sobre os outros.”
E, ainda numa citação com a mesma origem11, veja-se a seguinte reflexão do poeta acerca da iniciação (Espólio 54ª-52): “There are three distinct types of initiation – symbolic or outer, intellectual (outer of inner), and vital (inner). In the symbolic initiations, which reinforce the will and therefore lead to Magic as attainment, the candidate does not pass through stages of understanding, but through stages of intuition, so to speak; he is continually on the surface and appearance of things, and, though he attains the highest degree in whatever order or orders he goes through, that highest degree need not correspond (generally does not correspond) to anything like a parallel degree in any other of the inner initiations. In the intellectual initiations, which reinforce the intellect and therefore lead to Mysticism as attainment, the candidate passes through stages of understanding, but not through stages of life; he may know much, but he need not live that which he knows on the same level as he knows it. In the vital initiations, which reinforce the emotion and therefore lead to Alchemy as an attainment, the candidate lives that which he feels and knows.
(Is this right ? Do not rather these initiations differ on another score, whereas the difference between Magic, Mysticism and Alchemy (what of Gnosis ?) lies on another plane of interpretation ? Are not these initiations rather physical, etheric and astral ? (or, perhaps, etheric, astral and spiritual, or astral, mental and spiritual ?)
- Possibly there are three modes in which initiations can be interpreted: (1) the three ways of attainment, magical, mystical and Gnostic, (2) the three stages of attainment, Neophyte, Adept and Master, (3) the three degrees of attainment, astral, mental and spiritual.”
Fernando Pessoa, ocultismo, magia e Alta Magia
O génio de Fernando Pessoa e o facto de ter sido erigido “poeta do regime”, após o 25 de Abril, suscitam uma enorme atenção e interesse relativamente a todos os pormenores da sua vida. Para tal atracção contribui decisivamente o enorme acervo de que dispomos relativamente ao poeta. Escritor impenitente, autentico habitante da palavra, Pessoa deixou milhares de escritos, em verso e em prosa, completos e fragmentários, sobre uma enorme diversidade de assuntos, todos desembocando, de alguma forma, em si próprio.
Estudar o espólio de Fernando Pessoa é tarefa fundamental para conhecer o poeta. Do ponto de vista em que nos colocamos, é uma via extremamente produtiva para encontrar fontes sólidas para conhecer a história do esoterismo em Portugal, nas primeiras três décadas e meia do século XX.
Pessoa era, sem margem para dúvidas, um apaixonado pelo ocultismo, para recorrermos à terminologia mais em voga na sua época. Mas, terá chegado a ser um ocultista ?
O nosso terreno é o da História, pelo que nos interessam acima de tudo os factos que possam contribuir para dar resposta a tal questão. Neste caso, factos que, antes de mais, nos são facultados pelo próprio Fernando Pessoa. Sabemos actualmente, sem margem para dúvidas, que Fernando Pessoa se dedicou à astrologia, em termos teóricos e práticos, bem como que manifestou apreço pela maçonaria – indicando não lhe ter pertencido – e tendo chegado a apresentar-se na sua nota biográfica de 1935 como “cristão gnóstico”, com a seguinte “Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal”.
Este é, porém, o final da história.
Tracemos um breve quadro cronológico acerca do trajecto de Pessoa nas vias do ocultismo, conferindo especial atenção à componente mágica, que aqui nos interessa particularmente.
Tendo nascido em Lisboa a 13 de Junho de 1888, assinala Yvette Centeno que logo em Setembro de 1906, num caderno do heterónimo “Alexander Search” se encontram referências a bibliografia ocultista, concretamente de Berthelot, Papus e, numa outra nota, de Paulhan. No âmbito da correspondência de Fernando Pessoa, encontramos uma primeira nota com carácter potencialmente esotérico data de 8 de Setembro de 1914, tinha o poeta 25 anos, quando escreve a Sampaio Bruno, que não conhece, declarando o seu interesse pelo patriotismo e atracção pelo Sebastianismo, afirmando mesmo serem os livros de Bruno uma bússola que lhe manda fazer do autor o seu Norte.
Sabemos que Pessoa se interessou pelo espiritismo e pela teosofia. Está, aliás, actualmente demonstrado que se dedicou à escrita automática, com particular enfoque nos anos de 1916 e 1917. Pese embora o facto de ter colocado totalmente em causa o valor dessas comunicações, mostram as fontes disponíveis que voltou a recorrer a essa técnica, pelo menos até 1930.
Neste contexto Pessoa escreve a 6 de Dezembro de 1915 a Mário de Sá-Carneiro, referindo-se, em tom globalmente dubitativo e crítico, à Teosofia, pois muito embora a considere próxima do seu paganismo, repugna-lhe o “… seu humanismo e apostolismo…”.
Decisivamente, a espiritualismo esotérico sincrético – Oriente / Ocidente – não lhe agradava. Como refere Richard Zenith, Pessoa escreveu sobre teosofia considerando que se trata de uma “detestável sub-imposturice indiana” e, assinando como Rafael Baldaia e de forma mais suave, dizendo ser “apenas uma democratização do hermetismo. Se se quiser, é uma cristianização dele. Mais nada.” Mas a carta a Sá-Carneiro contém uma outra pista, porventura mais relevante para o nosso estudo. Nesse escrito, Fernando Pessoa compara a perturbação que a Teosofia lhe causou com aquela que resultou “… há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na teosofia, esteja a verdade real me “hante”.”
Diga-se que “hanté”, em francês, significa assombrado, no sentido fantasmagórico do termo. Parece certo que o livro referido possa ser o que consta da biblioteca pessoana com a entrada 0-12 Jennings, Hargrave, The rosicrucians, their rites and mysteries, 4th. ed. London: George Routleoge and Sons, New York: E. P. Dutton and Co., (1--?), 464 p. De acordo com as referências que encontrámos, o livro em causa é de 1870, pelo que a sequência temporal permanece ajustada.
Não haverá, que conheçamos, nenhuma forma de esclarecer em que altura, exactamente Pessoa leu, com tanto impacto, a obra em referência, cujo autor, do século XIX, é apontado como tendo pertencido a um “certo ramo da Ordem Rosacruciana, por volta de 1860” e que teve amigos celebérrimos como Paschal Berverly Randolph, Eliphas Lévi ou Edward Bulwer-Lytton. O que é certo é que Pessoa leu esta obra com toda a atenção, pois há sinais claros, nos múltiplos sublinhados e notas que ali deixou, de a ter lido atentamente pelo menos em duas ocasiões.
Um indício desta leitura ter sido relativamente prematura, no trajecto de vida de Fernando Pessoa, é o de serem em grande número as anotações centradas em bibliografia citada na obra, que o poeta vai anotando a margem com a menção “read” ou semelhante. Não encontrámos, até ao momento, situações similares noutras obras da biblioteca pessoal do poeta que estudámos, as quais são claramente posteriores, em termos cronológicos.
Em 24 de Junho de 1916, Pessoa escreve à sua tia Ana Luísa Nogueira, referindo-se amplamente à escrita automática, à sua mediunidade (“Aí por fins de Março (se não me engano) comecei a ser médium.”) e ao facto de ter passado a ter tendência para desenhar “… sinais cabalísticos e maçónicos, símbolos do ocultismo e coisas assim que me perturbam um pouco.”.
É tentador relacionar-se este surto mediúnico com a morte de Mário de Sá-Carneiro, que se suicidou em Paris a 26 de Abril de 1916. A questão é que, conforme se anotou, é o próprio poeta quem situa o início do fenómeno cerca de um mês antes da morte do seu maior amigo.
Na mesma carta, é dito ainda que:
“As comunicações actuais são, por assim dizer, anónimas e sempre que pergunto “quem é que fala?” faz-me desenhos ou escreve-me números.” E mais adiante:
“É singular que, apesar de eu não perceber nada de tais números, consultei um amigo meu, ocultista e magnetizador …Explicou-me apenas que esse facto de eu escrever números era prova da autenticidade da minha escrita automática – isto é, de que não era auto-sugestão, mas mediunidade legítima. Os espíritos – diz ele – fazem essas comunicações são, por isso mesmo, incompreensíveis ao médium, e de ordem que mesmo o inconsciente dele era incapaz de imaginar.”.
Manuela Parreira da Silva refere como hipóteses de identificação do “amigo ocultista e magnetizador “ Fernando de Lacerda ou Mariano Santana24, citando, respectivamente, João Gaspar Simões, em “Vida e Obra de Fernando Pessoa” e Eduardo Freitas da Costa. Fernando de Lacerda (1865 – 1918) foi, de facto, um importante espírita português. No entanto, estaria a viver no Rio de Janeiro desde 1911, razão pela qual consideramos esta sugestão, pelo menos, muito duvidosa.
Já Mariano Santana era, segundo as nossas fontes, “frequentador da tertúlia da Brasileira e amigo de Pessoa, que a ele se refere, por exemplo, em cartas para Ofélia Queirós.”. Pedro Teixeira da Mota refere-o entre aqueles com quem Pessoa manteria “… conversa ocultista e espiritual…”, sem outros detalhes. Não conseguimos obter, até ao momento outros dados relevantes sobre esta personagem. Seria, no entanto, interessante lograr desenvolver esta via de investigação, pois as referências de Pessoa aos resultados da sua mediunidade – sem crermos exagerar – lembram-nos bastante mais as comunicações através de signos e números referidas a propósito das evocações e invocações da Alta Magia, do que propriamente o que conhecemos da escrita automática dos espíritas Kardecistas.
Registe-se que em 1919 (ou 1918) Pessoa escreve “Um Caso de Mediunidade” onde desconstrói e crítica fortemente o espiritismo e a mediunidade, qualificando-os como perturbações mentais, texto no qual também se refere, em conclusão, ao espiritismo, que considera dever ser “proibido por lei”. No mesmo texto, num claro momento de rejeição do ocultismo, diz até “O que Deus fez oculto (se Deus fez alguma coisa oculta) é para se conservar oculto. Se não, ele tê-lo-ia feito claro.” e para terminar, mais adiante, “Graecia Mater, dirige-nos !”
A 6 de Março de 1917 Fernando Pessoa escreve a Frank Hollings (Londres), agradecendo o envio de catálogo de livros sobre o oculto e encomendando o “Book 777”. Trata-se do Liber 777, presente na biblioteca do poeta sob a entrada 2-1 777: vel prolegomena symbolica ad systemam sceptico misticae viae explicandae – fundamentum hieroglyphicum sauctissimorum scientiae summae”, London (etc.), The Walter Scott Publishing Co., 1910, 54 p..
O “Liber 777” trata-se de um dicionário de correspondências de elementos mágicos, que Aleister Crowley pretendia constituir para o ocultismo o que “... Webster or Murray is to English language.”. Neste volume Pessoa nada anotou de relevante, com excepção de um curto sublinhado no texto introdutório, onde Crowley sustenta que aprendeu a não usar os pontos de vista do céptico e do místico segundo a mútua tolerância dos sub-contrários, mas sim através afirmação dos contrários, o que, em seu entender, implica uma transcendência das leis do intelecto, que corresponde à loucura no homem comum e à genialidade no super-homem.
Muito embora, como se assinalou, o livro não identifique Crowley como seu autor, o facto é que o volume contém de forma absolutamente clara a indicação de se tratar de uma edição da A A (isto é, da “Argenteum Astrum”, uma organização esotérica liderada pelo Mago inglês), a qual é ali expressamente definida (em tradução livre de nossa lavra) como “... um conjunto de pessoas que conseguiram atingir a condição que tem sido várias vezes descrita como... “ a de “santos”, “mahatmas”, “mestres”, “adeptos” “... e assim por diante, consoante os acidentes de tempo e de lugar.”. Em suma, pelo menos em 1917 já Pessoa tinha conhecimento da existência desta Ordem Mágica, da linha thelémica crowleyniana.
Em 26 de Maio de 1919 Fernando Pessoa escreve a Herbert Jenkins (Nottingham), referindo-se a um anúncio surgido no The Times de 11 de Maio de 1916, sobre o livro “Secret Shakespearean Seals”, que não chegou a encomendar, mas sobre cuja disponibilidade para encomenda inquire. Trata-se do volume presente na biblioteca pessoana sob a entrada 8-481 Rosa-Cruz, Frades, Secret Shakespearean seals: revelations of Rosicrucian Arcana: discoveries in the Shakespeare plays, sonnets and works printed circa 1586-1740. Nottingham: J. Jenkins, 1916. VII, 88 p.
Mais tarde, a 20 de Junho de 1919, escreve também a Frank Woodward, respondendo a carta deste. Trata-se de um dos autores do livro que acabámos de indicar, que não terá gostado dos comentários de Pessoa ao facto do livro ser atribuído aos “Irmãos Rosa Cruz”, que o poeta considera “um exemplo de uma assumpção comum (embora impossível).”
De toda a forma, importará sublinhar que estas interessantes – e plenas de humor – referências à Rosa Cruz tem, em rigor, mais que ver com o interesse específico que Pessoa dedicou à questão de saber se a obra de Shakespeare seria, afinal, da autoria de Francis Bacon ou, até, de um grupo de pessoas. Essa será, em si própria, uma temática de estudo autónoma, que aqui não poderemos desenvolver.
A 29 de Novembro de 1920 escreve uma carta de “fim de namoro” a Ofélia Queirós onde afirma “O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinada cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.”. Será, prosaicamente, uma forma despeitada de justificar o fim da relação amorosa ou um momento de exacerbação, na qual revela em escrito algo que até então tinha mantido no seu intimo, sem revelar sequer à mulher amada ?
Prosseguindo no seu pertinaz interesse acerca da Rosa Cruz, a 24 de Setembro de 1924 escreve às Éditions Adyar, Paris, para encomendar a obra que consta da sua biblioteca como a entrada 0-24 Witemans, Fr., Histoire des Rose-Croix, Pref. W. H . Denier van der Gon, 3 ème ed., Paris: Adyar, 1925. 233 p.. Pela data de edição constante do volume, parece certo que a encomenda só teve resposta no ano subsequente, 1925.
Aproveitemos o ensejo para referir que a biblioteca de Fernando Pessoa, tal como se encontra preservada na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, é integrada por um total de 1055 volumes. Temos vindo a realizar, desde 2003, uma investigação sistemática acerca dos livros sobre esoterismo constantes do referido acervo, tomando como objecto de fundo do estudo as notas e sublinhados de Fernando Pessoa apostas nessas obras. Importa esclarecer que há outros volumes que integraram a biblioteca de Pessoa que não se encontram na Casa Fernando Pessoa, mas sim, ainda, na posse de familiares. Embora nos tenha sido manifestada disponibilidade para que acedêssemos a esse acervo, tal ainda não nos foi possível.
Uma primeira constatação, que nada espanta, é a de a área de formação e de vocação de Fernando Pessoa – língua, linguística e literatura - congregar 56,11% dos volumes que integram a biblioteca. Em termos analíticos, no que se refere à temática da nossa recolha, verificamos a seguinte subdivisão de volumes, por classe: Classe 0 – Generalidades, progresso, obras de referência, periódicos, organizações de carácter esotérico e semi-secreto: 17 em 24 volumes, isto é 70,83%.
É o que se esperaria, tendo em conta a menção expressa, na temática da classe, ao esoterismo, mas não deixa de ser relevante que a amplitude do interesse de Pessoa por este tipo de assuntos se revele de forma tão expressiva numa classe, ainda assim, integrada por temas muito diversificados.
Classe 1 – Filosofia: 58 em 162 volumes, o que significa 35,80%.
Pese embora nos pareça discutível a integração nesta classe de vários volumes, que melhor caberiam, porventura, na classe anterior, pode-se tomar em linha de conta uma dupla observação, pois não só confirmamos pela análise da sua biblioteca o sério interesse que o poeta dedicou à filosofia, como também podemos qualificar, sem grandes hesitações, a filosofia esotérica como umas das áreas às quais dedicava especial atenção.
Classe 2 – Religião, Teologia: 3 em 74 volumes, correspondendo a 4,05%.
Neste caso sentimos a necessidade de ser mais críticos: em rigor, nenhum dos três volumes considerados deveria, a nosso ver, estar integrados nesta classe, pois pareceria mais curial a sua integração numa das duas classes anteriores.
Classe 3 – Ciências Sociais: 1 em 76 volumes (1,32%).
O volume único em apreço trata-se da Lei das Sociedades Secretas, de 21 de Maio de 1935, pelo que parece correcta a integração nesta classe, sendo igualmente óbvio o interesse que Fernando Pessoa dedicou ao assunto, como atesta o seu célebre artigo, publicado no “Diário de Lisboa” a 4 de Fevereiro de 1935.
Classe 5 – Matemática, ciências naturais: 1 em 33 volumes (3,03%).
Trata-se de um livro sobre astrologia, que por força do seu título foi claramente mal classificado, como se de um estudo acerca de astronomia se tratasse.
Classe 6 – Ciências aplicadas, medicina, tecnologia: 0 em 11 volumes (0%).
Classe 7 – Arte, desporto: 0 em 11 volumes (0%)
Classe 8 – Língua, linguística, literatura: 7 em 592 volumes, o que significa 1,18%.
Os livros desta classe que integrámos na nossa listagem resultam de situações bastante particulares, justificativas da sua classificação na mesma: a “autohagiografia” de Aleister Crowley; dois livros portugueses sobre a temática sebástica e do quinto império; dois livros sobre esoterismo na literatura; uma obra de Aldous Huxley cujo título corresponde a uma máxima de Aleister Crowley e, por fim, uma obra de Yeats, que é esotérico, pelo menos, ele próprio, nomeadamente pela sua documentada participação na Golden Dawn.
Classe 9 – Geografia, biografia, história: 3 em 72 volumes, ou seja 4,16%.
A presença nesta classe de volumes integrados na temática esotérica não merece qualquer comentário particular, pelo que reservaremos a nossa atenção para os livros que aqui estão em causa, individualmente considerados.
São, portanto, 90 os livros registados na nossa listagem, o que nos permite quantificar a temática que nos importa neste estudo em 8,53% da biblioteca de Fernando Pessoa. No entanto, se realizarmos o cálculo sem considerar os livros constantes da classe 8, isto é, afastando por um momento a literatura do nosso campo de visão, concluímos que os livros sobre esoterismo e espiritualidade são 15,77% da biblioteca do poeta (73 em 463). Na listagem que elaborámos predominam os livros em língua inglesa (68), sendo 14 os volumes em língua francesa e apenas 8 os itens listados em português.
De entre as edições inglesas, registe-se a presença de 12 volumes editados pela “Modern Astrology Office”, 6 pela “Rider and Co.”, 5 da “William Rider And Son”, 3 da “W. Foulshan & Co.”, 2 da “Kegan, Paul, Trench, Trubner and Co.”, 2 da “The Teosophical Publishing Society”, 2 da “Chatto and Windus” e 2 da “A. Lewis”, todas editoras de Londres. Nas editoras francesas destacam-se, na nossa listagem, a Adyar (3 volumes) e a Daragon (2). Em Lisboa, merece referência especial para a Clássica Editora, origem de metade dos livros em língua portuguesa que acima referimos.
Quanto aos autores, a esmagadora maioria surge na listagem com apenas uma obra. São excepções:
Alan Leo, com 8;
Sepharial com 5;
Aleister Crowley com 3;
Arthur Edward Waite com 3;
H. S. Green com 3;
Edwin Raphael com 3;
George Wilde com 3;
A. Lida Churchill com 2;
C. W. Leadbeater com 2.
Dos 90 livros da listagem 36, isto é 40%, referem-se a astrologia (30) e a artes divinatórias (6), o que confirma a predilecção de Pessoa por esta temática. Tendo em conta a temática específica em que neste momento devemos centrar a nossa atenção, as sociedades iniciática e, especialmente, a magia, estão em causa 54 volumes da biblioteca de Pessoa.
Numa última anotação quantitativa, valerá a pena referir que encontramos na nossa listagem:
14 livros sobre temática maçónica;
10 sobre magia;
6 sobre temas que podemos sumariar integrando-se no ocultismo (inclui-se livros acerca do Graal, martinismo, antroposofia e a citada obra de Yeats);
5 relativos à Rosa Cruz;
5 acerca do espiritismo (incluindo-se volumes sobre a reincarnação);
2 sobre Kabbala;
Apenas 1 livro, directamente, sobre a Teosofia.
Quantos aos 10 livros sobre magia, podemos considerar verificar-se uma incidência elevada de livros com potencial prático:
1-23 Churchill, Lida A., The Magic Seven. 12 th. ed. London: L. N. Fowler and Co., 1911. 88 p.
1-24 Churchill, Lida A., The Magnet. Wimbledon: The Anglo-American Book Co., (1--?). 63p.
1-32 Conybeare, Fred Cornwallis, Myth, magic and horals: a study of christian origins. Ist. ed. London: Watts & Co. 1909. XVIII, 376 p.
1-67 Hartmann, Franz, Magic white and black on the science of finite and infinite life: containing practical hints for students of occultism. Ist. ed. London: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co., 1904. 298 p.
1-70 Hubert, M. H., Étude sommaire de la représentation du temps dans la religion et la magie: avec un rapport sommaire sur les conferences de l’exercice 1904-1905 et le programme des conferences por l’exercice 1905-1906. Paris: École Pratique des Hautes Études, 1905. 67p.
1-76 (The) Kabbalah unveiled, transc. Macgregor Mathers, Knorr von Rosenroth, 4th. ed., London: Kegan, Paul Trench, Trobner and Co., 1926, XIII, 360 p.;
1-84 Le Breton, John, The white-magic book. London. C. Arthur Pearson, 1930. XXX, 100 p.
1-151 Master of Therion, Magic in theory and practice: being part III of book 4, Paris, Lecram Press, (19-?), XXIX, 122 p.;
1-139 Sepharial, The Kabala of numbers: a handbook of interpretation. London: William Rider and Son, 1911. 168 p. The New Thought Library. Magic, alchemy and occult science.
2-1 777: vel prolegomena symbolica ad systemam sceptico misticae viae explicandae – fundamentum hieroglyphicum sauctissimorum scientiae summae”, London (etc.), The Walter Scott Publishing Co., 1910, 54 p..
Quanto às obras de Aleister Crowley, afinal o primeiro objecto das nossas investigações, apurámos que Fernando Pessoa possuiu as seguintes:
“The confessions of Aleister Crowley”, Volume I e Volume II, Mandrake Press, London, 1929;
“Liber 777”, The Walter Scott Publishing Co., Ltd., London, 1909;
The Master Therion, “Magick in theory and practice (being part III of book 4)”, Lecram Press, 26 Rue d’H… (?), Paris, sem data.
Cumpre encerrar este (longo) parêntesis, dedicado a caracterizar a biblioteca esotérica de Fernando Pessoa, como acervo de fontes especialmente relevante para a nossa investigação, regressando à digressão cronológica que vínhamos empreendendo.
Depois de algum interregno nesta sequência factual cronológica, cerca de três anos durante os quais não identificamos referências factuais relevantes para o nosso estudo, verificamos que em 1928, sem data exacta, Pessoa escreve a David Davidson acerca do livro “The Great Pyramid, Its Divine Message” e quatro outros panfletos. O livro não consta da nossa listagem, mas parece certo que está na Biblioteca Fernando Pessoa. Na carta é referido o envio de alguns excertos de textos publicados na imprensa portuguesa, que Pessoa explica terem que ver com a lenda do regresso de D. Sebastião. Trata-se, certamente, de uma minuta parcial de carta, que não terá sido remetida, pois o texto acaba abruptamente.
Igualmente sem data, mas ainda em 1928, Pessoa escreve a Teixeira de Pascoaes terminando com a curiosa frase “Não duvido de que a emoção do poeta possa viver mais do que a arte do artista em outras esferas, noutros mundos, em outros planos, como dizem os ocultistas menores.“. Também neste caso parece que a carta não terá sido remetida. Já em 1929, mais exactamente a 9 de Outubro, Pessoa escreve a Ofélia Queiróz, dizendo a dado passo “Preciso cada vez mais de ir para Cascais – Boca do Inferno mas com dentes, cabeça para baixo, e fim, e pronto, e não há mais Íbis nenhum.”.
Assim se demonstra como a encenação do suicídio de Crowley na Boca do Inferno, quase exactamente um ano depois, não surgiu do repentinamente, antes correspondendo a pensamentos suicidários que já anteriormente atormentavam a mente do poeta. Sendo matéria amplamente conhecida, abordada em diversa bibliografia facilmente disponível – muito embora de qualidade científica com enormes assimetrias – dispensamo-nos de descrever aqui em pormenor a sequência factual dos contactos estabelecidos entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley.
Sumariemos, portanto.
A história da relação entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley iniciou-se quase um ano antes do célebre episódio da Boca do Inferno, com uma carta de 18 de Novembro de 1929 dirigida por Pessoa à “The Mandrake Press”, cujo objectivo expresso era o de encomendar a autobiografia – dita “autohagiografia” – “The confessions of Aleister Crowley”. Fernando Pessoa mostra-se igualmente interessado por “The Stratagem”, um pequeno volume contendo três histórias escritas por Crowley, esclarecendo que tem na sua biblioteca uma outra obra do Mago, o “Liber 777”, que adianta ter adquirido sem conhecer a identidade do seu autor. Logo a 22 de Novembro de 1929, em resposta à sua carta, Pessoa recebe uma carta da editora informando do envio, em separado, do primeiro volume das “Confessions…” – o poeta receberá ainda, posteriormente, o segundo e último volume publicado, à época, da “autohagiografia” de Crowley – e do volume de “The Stratagem”.
A 4 de Dezembro de 1929, um passo fulcral: Pessoa dirige nova carta à editora, onde entre outros assuntos arrisca lançar a ponte para o contacto com Crowley: “Se tiverem, como provavelmente têm, oportunidade de comunicar com o Sr. Aleister Crowley, talvez possam informá-lo de que o seu horóscopo não está correcto e que, se ele admite que nasceu às 23h.6m.39s de 12 de Outubro de 1875, terá Carneiro 11 no seu meio-céu, com o correspondente ascendente e cúspides. Encontrará então as suas direcções mais exactas do que provavelmente as encontrou até agora. Isto é mera especulação, claro, e peço desculpa de vos maçar com esta intromissão puramente fantasista no que é, afinal de contas, apenas uma carta comercial.”
A “The Mandrake Press” responde a 9 de Dezembro de 1929, comunicando o envio, por correio separado, do segundo volume das “Confessions ...” e informando que a carta anterior de Pessoa foi passada a Crowley, que lhe responderá directamente, o que vem a ocorrer por carta de 11 de Dezembro de 1929 onde Crowley tece alguns comentários às anotações sobre astrologia que o português lhe tinha remetido, embora anotando que fazia “... muito pouca astrologia, excepto simples natividades e trânsitos”.
Não será, porventura, esse o principal motivo de interesse desta carta. Ao contrário de Miguel Roza, não nos impressiona que Crowley use na carta, respectivamente no início e no final da mesma, a expressões “Do what thou wilt shall be the whole of the law” e “Love is the law, love under will”, que correspondem à síntese final do “Liber Al vel Legis”, o “Livro da Lei”, ditado (inspirado ?) a Crowley pela entidade Aiwass no Cairo, em Março de 1904, que para o esoterista e seus seguidores corresponde ao advento do Éon de Horus, a nova Idade de que Crowley pretende ser Santo e Profeta. Provavelmente, estranho seria a ausência na carta de tais expressões.
O que nos parece mais significativo é que Crowley trate, desde logo, Pessoa por “Care Frate” (Caro Irmão) e que assine, sem qualquer hesitação (em grego, pelo seu punho) “O Grande Thérion 666”. Acresce que Pessoa, logo desde a carta de 6 de Janeiro de 1930, se dirige a Crowley como “Carissime Frater” (Caríssimo Irmão).
Estranha e a merecer investigação aprofundada é referência de Crowley a “the Message”. Pelo seu punho, como post-scriptum, o Mago escreve a 22 de Dezembro de 1929 que considerou a recepção das poesias de Pessoa como uma verdadeira Mensagem, “...que gostaria de explicar pessoalmente” e, na carta 14 de Janeiro de 1930 sublinha que “O nosso encontro aí elucidaria alguns pontos confusos no meu pensamento acerca da Mensagem”. De facto, os dois homens manifestam reciprocamente, logo numa fase inicial do seu contacto epistolar, a vontade de se encontrarem, parecendo certo que houve intenção de fazer coincidir tal encontro com um equinócio, bem como que a localização do mesmo em Portugal acaba por decorrer da posição de Pessoa, que não teria possibilidade de custear a sua própria deslocação ao estrangeiro.
Quanto ao episódio da Boca do Inferno, é datado a 23 de Setembro de 1930, coincidindo exactamente com o equinócio de Outono, que supostamente ali ocorre o suicídio de Crowley. Os contactos entre Fernando Pessoa e Aleister Crowley tornaram-se públicos quando a 27 de Setembro de 1930 - um Sábado - o Diário de Notícias publicou a primeira notícia onde se coloca a hipótese de Aleister Crowley se ter suicidado na Boca do Inferno, em Cascais
Sabemos hoje que tudo não passou de uma encenação, orquestrada pelo próprio Crowley, desenhada, com um forte sentido novelesco, por Pessoa e protagonizada por um amigo do poeta, o jornalista Augusto Ferreira Gomes, que pretensamente se teria deslocado a Cascais, a 26 de Setembro de 1930, com o intuito de entrevistar Aleister Crowley. O jornalista ter-se-ia dirigido à Boca do Inferno, sem explicação racional, onde, no grande corte na rocha que se encontra ao lado esquerdo daquele acidente natural, teria encontrando uma cigarreira e, sob aquela, uma carta.
A cigarreira, que se sabe hoje ter pertencido a Fernando Pessoa, ostenta em ambas as faces símbolos egípcios. A carta, redigida em papel timbrado do “Hotel de l’Éurope”, de Lisboa, está colocada num envelope, este com o timbre do Hotel Astoria, de Coimbra, encontrando-se endereçado a Miss Hanni L. Jaeger, à data a “mulher escarlate” de Crowley, com nota para lhe ser entregue, rezando o seguinte:
“ Ano 14, Sol em Balança, L.G.P. Não posso viver sem ti. A outra Boca do Infierno apanhar-me-á – não será tão quente como a tua. Hisos!
TU
LI
YU
“
A interpretação da carta de suicídio e a identificação da data sua ocorrência não exige, sequer, esforço de investigação, pois foi o próprio Fernando Pessoa quem se encarregou de nos esclarecer tais mistérios, tanto em notas pessoais, como no artigo publicado por Augusto Ferreira Gomes no “Notícias Ilustrado” de 5 de Outubro de 1930:
Ano 14 corresponde a 1930, na cronologia especial adoptada por Crowley;
L.G.P. seria o nome místico de Hanni Larissa Jaeger;
Hisos será uma palavra misteriosa de código, apenas conhecida por Crowley e Hanni Jaeger; Tu Li Yu, segundo o próprio Crowley teria explicado a Pessoa, foi um sábio Chinês, que viveu três mil anos antes de Cristo, de quem o Mago inglês seria a actual reincarnação; Sol em Balança, que Pessoa sublinha ser o ponto importante da carta, refere-se às 18 horas e 36 minutos do dia 23 de Setembro – o Equinócio de Outono.
Miguel Roza publicou entretanto interessantíssimos documentos do espólio do poeta, que registam a preparação da elaboração do bilhete de suicídio, contendo as notas para a “explicação” do seu conteúdo.
Claro está que o texto da carta, em si próprio considerado, indicia o suicídio de Crowley na Boca do Inferno, com toda a aparência de tal drástico acto ter sido motivado por razões amorosas: a recente e inopinada partida de Portugal de Miss Jaeger. Sabemos actualmente, através da já citada obra de Miguel Roza, que o objectivo final de Fernando Pessoa era o de editar uma “novela policiária” denominada “A Boca do Inferno”, cuja autoria seria atribuída a um detective de nacionalidade inglesa.
A correspondência entre Pessoa e o Mago inglês, iniciada nos termos acima referidos, mantêm-se durante 1930, antes e depois da vinda de Crowley a Portugal, a qual culmina com a encenação da Boca do Inferno, verificando-se posteriormente uma diluição de contactos, pois se bem que sejam conhecidas cartas datadas de 1931 e 1932, a verdade é que parece haver mais insistência de Crowley que disponibilidade de Pessoa, o qual, aliás, responde pela última vez ao Mago em Outubro de 1931. Anote-se, em todo o caso, que Pessoa manteve em paralelo, durante o período referido, correspondência com colaboradores de Crowley, nas organizações esotéricas por este lideradas, como é o caso de Francis Israel Regardie (secretário pessoal de Crowley) e Karl Germer (Mestre da Ordo Templi Orientis (O.T.O.).
Este facto é bem demonstrativo da profundidade que alcançaram os contactos do poeta com o universo crowleyano, pese embora a curta duração dos mesmos.
Num total, encontram-se identificadas e publicadas:
- 11 cartas dirigidas por Pessoa a Crowley;
- 15 cartas dirigidas por Crowley a Pessoa;
- 25 cartas de Pessoa para a “The Mandrake Press”, Francis Israel Regardie e Karl Germer, sendo que patentemente parte dessas correspondência destinava-se ao próprio Aleister Crowley, contactado por interposta pessoa essencialmente enquanto se mantém publicamente o embuste do seu suicídio;
- 4 cartas da “The Mandrake Press” para Fernando Pessoa;
- 3 cartas de Hanni Larissa Jaeger para Fernando Pessoa;
- 8 cartas de Francis Israel Regardie para Fernando Pessoa;
- 3 cartas de Karl Germer para Fernando Pessoa.
Sendo evidente a motivação esotérica destes contactos, não deixa de ser curioso que Pessoa e Crowley patenteiem igualmente o seu interesse em obter resultados económicos através de publicações a realizar, directa ou indirectamente, em parceria, o que nos conduz a admitir que uma das razões para a diminuição de interesse nestes contactos por parte de Fernando Pessoa seja o facto de, por um lado, se ter tornado evidente que não lograria, por esta via, publicar as suas obras e, por outro lado, por ter constatado que Crowley insistentemente lhe solicitava a angariação de verbas para determinados projectos e, diríamos nós, para a actividade das suas organizações. As dificuldades económicas e os estratagemas para as ultrapassar são, a partir de dada altura, uma constante da vida de Aleister Crowley.
Entretanto, fora da esfera de Crowley, a 30 de Abril de 1930 Pessoa escreve56 ao Conde de Keyserling uma longa carta sobre a Alma (mais exactamente sobre as três Almas) de Portugal. Trata-se de um texto fortemente sebástico, que assina como “O.S., per”. Em nota de Manuela Parreira da Silva, O.S. é interpretada como a ordem referida noutros escritos do poeta como “Ordo Solis”, “Ordo Serpentis”, “Ordo Sebástica” ou “Ordo Sanctissimorum”.
Temos documentada a existência actual de organizações esotéricas, de cariz thelémico, que usam designações desse tipo, como por exemplo “Ordo Serpentis Helicula” – a Ordem da Serpente Espiralada -, de San Diego (Califórnia, EUA).
Será esta conexão admissível ? Nos fragmentos para uma obra que se denominaria “O Caminho da Serpente”58, Pessoa escreve o seguinte:
“ As Sete Ordens Iniciáticas
(Do Sol, do Signo, do Templo, da Serpente, do Sepulcro,
Sebástica e do Santíssimo)
Três ramos ascendentes, com ordens de subida em cada um. Ao todo são sete ordens, sendo três angulares, seis externas, uma interna. Considerar isto.
Na ordem externa inferior, Ordo Solis, a congregação dos infiéis, a quem só o Sol, realidade externa, é visível, actual ou simbolicamente. Na ordem externa inferior direita, Ordo Signi, a congregação dos fiéis externos, que aceitam não propugnar senão certos princípios abstractos e cristãos, cuja semelhança com outros não vêem. Na ordem interna-externa inferior, Ordo (?) a congregação dos ingressos, sub modo, na O. de C.. Na ordem média esquerda, Ordo Serpentis, a congregação dos iniciados da O. Solis. Na ordem média direita, Ordo Sepulchri, a congregação dos in____ Na ordem média central (a culta e sem exterior); Ordo Sebastica, a congregação Ordo Sanctissimorum.”
Mais tarde, a 16 de Outubro de 1930, Pessoa escreve uma carta a João Gaspar Simões, a exemplo de tantas outras referindo-se a matéria literária e editorial. Nesta, porém, referindo-se ao poema “O Último Sortilégio”, que envia juntamente com a carta e explica ter escrito no dia anterior, para publicação na “Presença”, escreve: “Chamo a sua atenção para um pormenor que é preciso vigiar nas provas – o qual pormenor é dois pormenores. Trata-se de não esquecer as aspas que marcam o poema como “dramático”, isto é, falado por terceira pessoa, e de verificar que, como essa pessoa é mulher (e, digamos, bruxa), os adjectivos não saiam no masculino onde a pessoa falante se refere a si mesma. Uma advertência: este poema é uma interpretação dramática da “magia de transgressão”. Se, por alguma circunstância, achar melhor não o publicar, não hesite em não o publicar.”
O ÚLTIMO SORTILÉGIO
Já repeti o antigo encantamento, E a grande Deusa aos olhos se negou. Já repeti, nas pausas do amplo vento, As orações cuja alma é um ser fecundo. Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. Só o vento volta onde estou toda e só, E tudo dorme no confuso mundo.
Outrora meu condão fadava as sarças E a minha evocação do solo erguia Presenças concentradas das que esparsas Dormem nas formas naturais das coisas. Outrora a minha voz acontecia. Fadas e elfos, se eu chamasse, via, E as folhas da floresta eram lustrosas.
Minha varinha, com que da vontade Falava às existências essenciais, Já não conhece a minha realidade. Já, se o círculo traço, não há nada. Murmura o vento alheio extintos ais, E ao luar que sobe além dos matagais Não sou mais do que os bosques ou a estrada.
Já me falece o dom com que me amavam. Já me não torno a forma e o fim da vida A quantos que, buscando-os, me buscavam. Já, praia, o mar dos braços não me inunda. Nem já me vejo ao sol saudado erguida, Ou, em êxtase mágico perdida, Ao luar, à boca da caverna funda.
Já as sacras potências infernais, Que, dormentes sem deuses nem destino, À substância das coisas são iguais, Não ouvem minha voz ou os nomes seus, A música partiu-se do meu hino. Já meu furor astral não é divino Nem meu corpo pensado é já um deus.
E as longínquas deidades do atro poço, Que tantas vezes, pálida, evoquei Com a raiva de amar em alvoroço, Inevocadas hoje ante mim estão. Como, sem que as amasse, eu as chamei, Agora, que não amo, as tenho, e sei Que meu vendido ser consumirão.
Tu , porém, Sol, cujo ouro me foi presa, Tu, Lua, cuja prata converti Se já não podeis dar-me esta beleza Que tantas vezes tive por querer, Ao menos meu ser findo dividi - Meu ser essencial se perca em si, Só meu corpo sem mim fique alma e ser!
Converta-me a minha última magia Numa estátua de mim em corpo vivo! Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, Anónima presença que se beija, Carne do meu abstracto amor cativo, Seja a morte de mim em que revivo; E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!
A 22 e 26 de Outubro de 1930 Pessoa volta a escrever cartas a João Gaspar Simões nas quais se refere a “O Último Sortilégio”, a segunda das quais contendo pormenores bastante relevantes sobre a génese do poema e sua comparação com um outro poema, que Pessoa diz mais antigo, incompleto e “que vai muito mais além deste na mesma geração - “Lúcifer” – e os cinco poemas denominados, em conjunto, “Além-Deus”.
Lúcifer
Como quando o mortal, que a terra habita,
Aprende que esse céu todo estrelado
É cheio de outros mundos, na infinita
Pluralidade do criado,
E um abismo se lhe abre na consciência
E uma realidade invisível gela,
Seu sentimento de existência,
E um novo ser-de-tudo se revela,
Assim, pensando e, a meu modo, vendo
Na interna imensidão do espaço abstracto,
Fui como deuses vários conhecendo,
Todos eternos e infinitos sendo,
Os astros.
E vi que Deus, se é tudo para o mundo,
Se a substância e o ser do nosso ser
Não é o único Deus mais que profundo.
Há infinitos de infinitos.
Por isso, deus é eterno e infinito, e tudo,
Sim mesmo o tudo que é, Deus o transcende.
Porém muita ciência a mais ascende
Que a esse único Deus que a tudo excede.
Além do transcender-se que Deus é.
E ergui então a voz amargurada,
Porque o conhecimento transcendente
Deixa a alma exânime e gelada.
E clamei contra Deus o além-Deus,
Disse aos meus pares o segredo ominoso.
Eterno condenado, errarei sempre
Sempre maldito,
Porque este mundo (…)
Só sendo mais que Deus eu poderia
Transcender o infinito do infinito
E nascer para o inumerável dia …
Como, banido, o arqueiro Filoctetes…
Sou só na alma porque vi o abismo.
Excluso eterno (…)
A pávida que cismo.
Sou morte, porque sei que o infinito,
É limitado, e assim, Deus morre em mim.
Deus sabe que é uno, um e infinito,
Mas eu sei que deus, sendo-o não o é.
Mais longe que Deus vai meu ser proscrito.
Além-Deus
I / ABISMO
OLHO O TEJO, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
II / PASSOU
Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,
Turbilhão de Ignorado,
Sem ter turbilhonado...,
Vasto por fora do Vasto
Sem ser, que a si se assombra...
O Universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...
III/ A VOZ DE DEUS
Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que para Deus me afundo.
IV / A QUEDA
Da minha idéia do mundo
Caí... Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
(Entre a árvore e o vê-la)
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida —
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando — o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
É, pelo menos, interessante esta sequência, tendo em conta a proximidade temporal com o episódio da vinda a Portugal de Crowley. A 6 de Dezembro de 1930, Pessoa escreve uma outra vez a João Gaspar Simões, com quem à época mantinha contacto muito frequente, voltando a referir-se a “O Último Sortilégio” e, neste caso, remetendo “por simples curiosidade” o “Hino a Pã”, de Crowley, que sublinha não ser para publicar, pois “… seria preciso a autorização de Mestre Therion; e o Mestre Therion desapareceu, não se sabendo se se suicidou…”.
Quanto ao “Hino a Pã”, que na dita carta Pessoa qualifica como “um “poema mágico” a valer” integra a obra de Crowley, presente na biblioteca do poeta, 1-151 Master of Therion, Magic in theory and practice: being part III of book 4, Paris, Lecram Press, (19-?), XXIX, 122 p., que é, efectivamente, um manual de magia, contendo pormenorizadamente elementos sobre a sua teoria e prática.
A 4 de Janeiro de 1931 Pessoa escreve, uma vez mais, a João Gaspar Simões, dando explicações adicionais acerca de “Hino a Pã” e do seu autor, correspondência essa que, sobre o mesmo tema, prossegue a 7 de Fevereiro de 1931, bem como, mais tarde, em 5 de Outubro de 1931, 1 de Novembro de 1931, 20 de Novembro de 1931 e 11 de Dezembro de 1931. Na carta de 4 de Janeiro Pessoa explica que “O Hino a Pã é uma espécie de prefácio do trabalho intitulado Magick (Magia), que foi publicado em Paris, em quatro tomos. Crowley mandou vir de Inglaterra um tratado desses para mim; recebi-o, por sinal, já depois de o Crowley ter desaparecido de Lisboa em circunstâncias misteriosas.”
Já na carta de 5 de Outubro, com delicioso sentido de humor, Pessoa, perguntando quando será o poema publicado na “Presença”, escreve “O Crowley, que, depois de se suicidar, passou a residir na Alemanha, escreveu há dias e perguntou-me pela tradução – ou, antes, pela publicação da tradução.” e, mais adiante, “Veja lá, agora: não me deixe ficar mal com o Mago !” Fernando Pessoa não colocou no seu volume do “Magick” qualquer anotação ou sublinhado, o que nos leva a colocar a hipótese, desde logo por comparação com os outros livros da sua biblioteca que analisámos, de que o poeta nem sequer o tenha lido. A explicação para tal facto pode decorrer exactamente de integrar o referido poema.
O “Hymn to Pan”, foi traduzido para português por Pessoa e veio a ser publicado na revista “Presença” nº 33, Julho-Outubro de 1931, podendo assim admitir-se que o poeta apenas tenha utilizado este volume para esse propósito específico.
HINO A PÃ
Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã!
Vem turbulento da noite a flux
De Pã ! Iô Pã !
Iô Pã ! Iô Pã ! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artemis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da âmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nós que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente — do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera !
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte lião —
Vem, está vazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
E a palavra do Louco e do Secreto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Io Pã ! Iô Pã ! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã ! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã !
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã! Iô Pã!
Novo interregno, na nossa sequência factual. A 20 de Outubro de 1933 Pessoa escreve à editora londrina Ridder & Co., solicitando informação acerca da publicação de uma obra de Arthur Edward Waite, The Secret Tradicion in Freemasonry, de cuja republicação qual refere ter visto indicação em nota constante da obra 0-22 Waite, Arthur Edward, Emblematic free masonry and the evolution of its deeper issues, London: William Rider and Son, 1925, 301 p.. Pede ainda informação acerca da The Occult Review, manifestando interesse num artigo sobre a existência de uma sociedade secreta no seio da Igreja Católica.
Refira-se que Arthur Edward Waite (1857 – 1942) - autor de quem Pessoa possuía igualmente os livros 0-21 Waite, Arthur Edward, The brotherhood of the Rosycross: being records of the house of the holy spirit in its inward and outward history, London: William Rider and Son, 1924, XXIII, 649 p. e 1-158 Waite, Arthur Edward, The holy grail: its legends and symbolism, London: Rider and Co. (etc.), 1933, 624 p.; - foi membro da Ordem Hermética da Golden Dawn, da Societas Rosicrucian in Anglia e, mais tarde, após as cisões que desmantelaram a Golden Dawn, da “Fellowship of the Rosy Cross. Já em 28 de Janeiro de 1934, Fernando Pessoa escreve uma carta ao jornal “A Voz”, acerca de um artigo sobre ordem de dissolução das obediências maçónicas na Prússia. Assina como “Um irregular do transepto”.
A 17 de Outubro de 1934 escreve uma carta a A. Allen, em inglês. Sendo o assunto da carta matéria comercial76, Pessoa escreve, com humor, que “Não sendo Mágico, não as poderia ter carregado com qualquer poder mágico;” referindo-se às palavras “concrete news” constante de uma sua missiva anterior. A 13 de Janeiro de 1935, em extensa carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, na qual se refere profusamente à génese e desenvolvimento dos heterónimos, responde por fim a perguntas do destinatário da carta sobre o seu interesse acerca do ocultismo, com pormenores do maior interesse. Trata-se da famosa carta acerca dos heterónimos de Pessoa, amplamente referida e comentada pelos investigadores pessoanos.
Escreve Fernando Pessoa:
“Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes nesses mundos, em existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos co-existam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do ocultismo, ou seja a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria Anglo-Saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se ele é Criador ou simplesmente Governador, do mundo. Dadas essas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência, desde cerca de 1888. se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.”
É a seguinte a epígrafe a “Eros e Psique”:
“… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito,
e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor,
são, ainda que opostas, a mesma verdade.
do RITUAL DO GRAU DE MESTRE DO ÁTRIO
NA ORDEM TEMPLÁRIA DE PORTUGAL”
Segue-se, em termos temporais, o célebre artigo publicado no “Diário de Lisboa” a 4 de Fevereiro de 1935, visando o projecto legislativo cujo objecto era a proibição da actividade das associações secretas, usou de refinada ironia para demonstrar que aquela iniciativa legislativa da ditadura se destinava exclusivamente a atingir a Ordem Maçónica. Tal conclusão fundamentou-a Pessoa no facto de há data e em Portugal, que fosse do seu conhecimento, para além da maçonaria apenas funcionarem como organizações de cariz iniciático, “... essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus...”, “... uma ou outra possível Loja martinista ou semelhante...”, sendo ainda certo que a Carbonária se encontrava extinta e que há muito estava “... em dormência a Ordem Templária de Portugal...”.
O dito projecto legislativo acabou por ver a luz, como a Lei das Sociedades Secretas, de 21 de Maio de 1935. A 10 de Outubro de 1935, escreve a Tomás Ribeiro Colaço, perguntando a dado passo porque se zangou tanto com o seu artigo em defesa da Maçonaria. Adoece e morre, mais tarde, a 30 de Novembro de 1935, aqui terminando a sua biografia.
Notas de Pessoa a um livro mágico:
Não havendo forma segura de o integrar na sequência cronológica, à falta de fontes que nos concedam elementos de referência, para além da data de publicação, há um livro que se nos afigura essencial, para a sequência do nosso raciocínio: 1-76 (The) Kabbalah unveiled, transc. Macgregor Mathers, Knorr von Rosenroth, 4th. ed., London: Kegan, Paul Trench, Trobner and Co., 1926, XIII, 360 p.; A análise da notas e sublinhados de Fernando Pessoa ao “(The) Kabbalah unveiled” são inúmeras, demonstrando à saciedade o interesse que o poeta dedicou à leitura deste livro.
Claro está que a discussão pode (e deve) começar por se definir se este livro versa a temática da magia ou se é, estritamente, um livro sobre Cabala. É uma obra muito complexa acerca da Kabbalah, da qual consta um prefácio escrito pela mulher de Samuel Liddel Mathers, autor da tradução do livro nesta versão inglesa. Esclareça-se, muito brevemente, que Mathers nasceu em 8 de Janeiro de1854, na cidade de Londres. Tendo dedicado a maior parte da sua vida ao ocultismo, teve como mentores Woodman, Westcott e Anna Kingsford, com os quais viria a participar na “Hermetic Order of The Golden Dawn”. Pese embora o facto de ter acolhido Aleister Crowley na “Golden Dawn”, veio a gerar-se entre ambos uma terrível querela – que o Crowley afirma textualmente ter implicado autênticos combates mágicos -, a qual se pode afirmar ter acabado por conduzir a extinção da Ordem, ao menos na sua feição original. Mathers morreu em 1918.
Chirstian Knorr von Rosenroth, autor da obra traduzida por Mathers, viveu no século XVII (1636 / 1689), tendo nascido na Silésia (Alemanha). Os seus estudos sobre ocultismo terão sido bastante influenciado por Jacob Boehme (1575 / 1624), filosofo místico alemão. A “Kabbalah denudata” foi a primeira tradução do “Zohar” do hebreu para o latim. Tratando-se, como se disse, de um complexo livro sobre Cabala, arriscamos relacioná-lo com o interesse do poeta pela magia tendo em conta, antes de mais, a pessoa e biografia do tradutor e autor do prefácio da edição inglesa. Conhecidas e amplamente documentadas as relações de Pessoa com Crowley, resulta evidente o contacto do poeta com a vertente do esoterismo europeu da sua época herdeiro directo da Golden Dawn original, pelo que se não foi por tais interesses que decidiu adquirir e estudar atentamente a “Kabbalah denudata”, podemos colocar como séria hipótese alternativa que estas leituras sobre a cabala lhe tenham aberto as portas do complexo universo da Alta Magia.
Muito embora uma coisa não se reduza à outra, antes pelo contrário, a Cabala e a magia cabalística são elementos importantíssimos da Alta Magia, podendo citar-se a este propósito os estudos de Eliphas Levi, lado a lado com Mathers, Crowley e tantos outros. Como argumento contrário pode aduzir-se a hipótese do interesse de Fernando Pessoa pela Cabala se ter resumido à componente relacionada com as artes divinatórias, que já referimos terem constituído uma das motivações mais perenes e relevantes do poeta, no que ao esoterismo diz respeito. O que reiteramos é que, não a olhando de forma isolada, mas sim em termos sistemáticos, no que ao conjunto dos interesses de Pessoa diz respeito, a cabala surge estratégica e adequadamente como uma ponte entre as artes divinatórias e a magia, pelo que pensamos que o argumento pode ser acolhido na nossa investigação, sem carácter conflituante relativamente às hipóteses de trabalho para as quais temos vindo a apontar.
Está em causa um volume em formato aproximadamente B5, de capa dura, preto e com dizeres na lombada a dourado. O sentido essencial das notas e sublinhados do poeta, neste livro, é a marcação sequencial, de forma muito precisa e intensa, das explicações dadas no livro, passo a passo, acerca dos conceitos cabalísticos. Por outras palavras, trata-se de um sequência de leitura profunda, não de um assinalar de determinadas passagens muito específicas, pelo seu particular objecto ou, por exemplo, por referência a uma pessoa, local ou acontecimento. É um anotar de quem está a estudar, a procurar aprender, não de quem deixa notas esparsas tendo em vista facilitar a identificação de uma certa passagem ou referência, numa consulta futura do mesmo livro.
Mais do que outras referências, porventura incompreensíveis sem o recurso directo ao livro, propriamente dito, valerá talvez a pena transcrever aqui algumas passagens escritas pelo punho de Pessoa, no próprio volume. Na página 19, encontramos um traço a lápis, ao alto e no lado direito do texto, englobando:
“… connecting link, is required, and hence we arrive at the form which is called potential existence, will still scarcely admit of clear definition.”
À esquerda do texto apontado foi escrito à mão, a lápis, de forma bem legível:
“static”
Por seu turno, na página 20 e à esquerda do texto, foi escrito à mão, a lápis, de forma bem legível:
“Sem
Sem Fim
Sem Fim Luz”
Anote-se que o texto à margem do qual se escreveu segue, cabalisticamente, até “... ain soph aur = the Limitless Light ...”
Na página 24, à esquerda e a lápis, encontra-se escrito:
“sabedoria
(ou saber)”
Nota: O texto em causa versa sobre a Sephira Chokmah, “wisdom”.
E mais, adiante, na mesma página, surge anotado à esquerdo do texto, a lápis:
“entendimento
(comprehensão)”
Nota: O texto em causa versa sobre a terceira Sephira, Binah, “... the understanding...”.
Na página 29, encontramos, antes de mais, uma anotação à mão, a lápis, à direita:
“elder gods ?”
O texto que se encontra ao lado da anotação é o seguinte:
“These primordial worlds are called the “kings of ancient time”, and the “kings of Edom who reigned before the monarchs of Israel”.”
Na página 30 encontra-se uma anotação escrita a lápis, à margem, junto ao traço a lápis que enquadra o texto acima transcrito. Muito embora a leitura seja muito difícil arriscamos a seguinte transcrição:
“sense asiah
= hr.”
Repare-se que imediatamente antes da passagem que, acima, indicámos enquadra-se pelo traço vertical a lápis, encontra-se no texto a referência a “olahm hr-qliphoth”, que é indicado como “o mundo da matéria”.
Mas é nas três páginas da contracapa interior, que se encontra o resultado mais fascinante e prometedor do nosso estudo, no que à “Kabbalah Denudata” diz respeito, sob a forma de extensas notas escritas a lápis por Fernando Pessoa, as quais são de leitura bastante difícil. Procuraremos respeitar escrupulosamente a apresentação e sequência exacta das anotações manuscritas a lápis.
1ª Página:
… Possuir o Verbo é filho, não de Deus
Pater mas do Espírito Santo, não
do corpo mas da alma de Deus
1st the sephirot corresp to Ain
2nd “ “ “ “ Ain Soph
3rd “ “ “ “ Ain Soph Aur
Malkuth corresp to Kether
the four world corresp to these 4
divisions.
Nota: “corresp” é o que parece uma contracção ou abreviatura de “corresponds”, palavra que aparece correctamente escrita, integralmente, logo no início da página seguinte.
2ª Página:
Malkuth, bride, corresponds to Binah,
Microprosopus, father, “ “ Chokmah
God creates first himself as creator.
Enquanto Deus manifestação de seffarad
(Aimh) D Creador do mundo é um; en-
quanto creador do mundo é
(Elohim) dois (Chokmah e Binah); en-
quanto Deus total, Nephesch ou
sanha ou trêz reis do seffarad
Deus é três; enquanto Elle e
o mundo, por crear e por ñ
Malkuth a soltar, é quatro (IHVH);
=
natureza enquanto
em
até ao dez com e por os 10
Sephirot.
todas as religiões certas, porque
se conformam com um ou
outro aspecto. até quem
diz que não há Deus tem ra-
zão pois verdadeiramente Deus é
o seffarad que não está no
mundo para o bem.
3ª Página:
P. 40 – VI.(a) = S(?) of degrees in Order.
preexistence
forexistence
preexistence
antexistence
inexistence
+
negative existence ante-ser ser não
A pre-singular ser não poder ser
pretentious existence poder ser para ser
Seph
existence 10 1 ser
self-existence 9 2 singular ser-se
other-existence 8 3 outro ser
existences 4 serem
self-existences 5 plural serem-se
other-existences 6 ………
inexistences 7 não serem
self-inexistences 8 plurals não serem-se
other-inexistences 9 ……….
negative inexistence
inexistence 10 ? não ser
ante-inexistence Seffarad ? não poder ser não ser
nada corresponde em Malkuth ao Ain (: ante-se)
Relativamente à nota inicial desta terceira página, é evidente que corresponde a uma referência a uma passagem concreta do livro, que Fernando Pessoa identificou com página, parágrafo e alínea. Na tradução em português que possuímos, na qual a página é a 61, o texto em causa é:
Conclusão: As três primeiras Sephiroth formam o modo do pensamento; as três Sephiroth seguintes, o mundo da alma; e as quatro Sephiroth restantes, o mundo do corpo, correspondendo dessa maneira aos mundos intelectual, moral e material.
Fernando Pessoa assinalou esta passagem específica do livro, através de um traço vertical a lápis. O mais curioso é a ligação que Pessoa faz, na anotação escrita que vimos comentando, entre a referência do livro, agrupando os Sephiroth, relativamente aos graus da Ordem.
De facto, os graus iniciáticos da Argenteum Astrum, criada e liderada por Aleister Crowley, estavam organizados de acordo com a árvore da vida e com os 10 Sephiroth, exactamente como ocorria com a Golden Dawn original.
Crowley esclarece expressamente ser a Terceira Ordem a A.A., sendo a Primeira a G.D. (Golden Dawn) e a R.R. et A.C. (Roseae Rubeae et Aureae Crucis). Na fórmula utilizada por outros autores, a ordem encontrava-se subdividida em três ordens, a Golden Dawn, Rosy Cross e Silver Star, sendo esta última, na sua forma latina, a A.A.. Há portanto, em qualquer caso, uma divisão da sequência de iniciação em três níveis, agrupando-se em cada um parte dos graus de iniciação. Isto grosso modo, pois há graus de passagem, cuja função é fazer a ponte de uma ordem para a seguinte, cada ordem tem três graus. Esta matriz hierárquica que faz corresponder graus iniciáticos aos Sephiroth da Árvore da Vida, segundo alguns, terá como origem a Rosa Cruz de Ouro, alemã do século XVIII, tendo sido retomada pela Societas Rosicruciana in Anglia e, depois, pela Golden Dawn, através de W. Wynn Wescott e (exactamente) por S. L. MacGregor Mathers. A sequência é:
Ipissimus
Grau 10 = 1
Kether
Magister Templi Magus
Grau 8 = 3 Grau 9 = 2
Binah Chokmah
Adeptus Major Adeptus Exemptus
Grau 6 = 5 Grau 7 = 4
Geburah Chesed
Adeptus Minor
Grau 5 = 6
Tiphereth
Praticus Philosopus
Grau 3 = 8 Grau 4 = 7
Hod Netzach
Theoricus
Grau 2 = 9
Yesod
Zelator
Grau 1 = 10
Malkuth
Abaixo, temos ainda o grau 0 = 0 de Neófito.
Parece, portanto, certo que temos aqui uma prova concreta do conhecimento de Fernando Pessoa acerca das ordens esotéricas e iniciáticas organizadas com base nos 10 Sephiroth. Repare-se que escreveu na sua nota “Order” e não “orders”. Estava a pensar numa organização concreta e não, de uma forma genérica, neste tipo de organizações iniciáticas.
Os escritos pessoanos sobre ordens iniciáticas e iniciação.
Tendo em conta as interessantíssimas notas escritas de Fernando Pessoa acerca da estruturação e hierarquia das Ordens Iniciáticas, constantes do seu espólio, reveladas, entre outros, por Yvette K. Centeno, resultam dados exactíssimos acerca da estruturação das Ordens iniciáticas relacionadas (para simplificar) com a Golden Dawn. Do espólio (54-91), consta a seguinte transcrição, oriunda da obra que temos vindo a citar:
“Há, em ordens menores, ordem externa e ordem interna; formam a primeira os neophytos e zeladores, a segunda os practicos e philosophos; a primeira abrange app. E comp. Os simples iniciados (Neophytos) e os Mestres (Zeladores), e a segunda os graduados dos Altos Graus, e os graduados dos Graus de Passagem – practicos e philosophos respectivamente.
Nas ordens maiores, há a ordem externa e a ordem interna também; a ordem externa consiste numa organização que parte do 1º e vae ao 10º grau, exactamente como está indicado; a ordem interna, visto que se trata de altas ordens (e a ordem interna é que é a verdadeira, sendo externa apparente), começa no Adepto Menor, que é o Neophyto da ordem interna. Segue o Adepto Maior que é o Zelador da Ordem Interna; no Adepto Exempto, que é o Pratico da ordem interna fora e o Philosopho da ordem interna dentro. O Mestre do Templo da Ordem Externa é o Adepto Menor da Ordem Interna; o Mago da Ordem Externa é o Adepto Maior da Ordem Interna; o Ipsissimo da Ordem Externa é o Adepto Exempto, fora, e o Mestre do Templo, dentro, da Ordem Interna.
Nestas disposições interpretativas se contém a explicação de todas as Ordens e de todas as maneiras de Ordens. Ellas se applicam, por egual, às Ordens que dirigem a Maçonaria, às que governam a Egreja, e às que animam os Livros, pois tudo é o mesmo, porque vem do mesmo, sim, do mesmo Ipsissimo (que quer dizer “mesmo”) da Ordem Interna.
……………………………………………………………………………………………......
Dos quatro sentidos do symbolo, a gradação é assim:
prof. sentido literal
N. – sentido literal do symbolo
Z. – sentido allegorico do symbolo Atrio (Pateo)
Pr. – sentido moral do symbolo sent. Alleg.
Ph. – sentido espiritual literal do symbolo
AMin. – sentido espiritual allegorico do symbolo Claustro
AMaj. – sentido espiritual moral do symbolo sent. Moral
AEx. – sentido inteiramente espiritual do symbolo
AEX(dentro) – sentido divino literal do symbolo Templo
M.T. – sentido divino allegorico do symbolo sent.
Mago… - sentido divino moral do symbolo spirit.
Ipissimo – sentido divino espiritual do symbolo
Assim, numa cadeia racional, tudo é um.”
Conclusões
Mais do que conclusões, nesta fase da nossa investigação haverá que falar em interrogações e em hipóteses de trabalho. Em todo o caso, para além do já anteriormente anotado, ao longo do nosso texto, pensamos estar em condições para podermos sublinhar o seguinte:
- É absolutamente certo que o interesse de Fernando Pessoa relativamente ao ocultismo foi muito profundo, abrangendo a totalidade da sua vida adulta.
Parece, por isso, artificiosa a ideia, difundida por exemplo por António Quadros, no sentido de que se poderiam identificar ter fases distintas, evolutivas, na vida do poeta, a primeira de carácter filosófico, a segunda paganista e a terceira gnóstica.
- Sendo evidente o interesse particularmente intenso de Pessoa pela astrologia, que praticou profusamente, a conexão de fundo que encontramos nas suas leituras é principalmente com a Rosa Cruz e com a Cabala.
A alquimia tem também um papel extremamente relevante para Pessoa, arriscamos dizer que com especial ênfase no final da sua vida e por força de algum desencanto relativamente à Magia, curiosamente sendo também nesses seus últimos anos que parece ampliar-se a sua admiração pela maçonaria.
- São repetidas as afirmações de Pessoa no sentido de não pertencer a nenhuma organização esotérica.
Acontece, no entanto, que boa parte dos seus escritos sobre ocultismo revelam conhecimentos profundos acerca da estrutura, modo de funcionamento e filosofia de certas organizações iniciáticas.
Até ao momento, não conseguimos encontrar conexão demonstrativa de que tais conhecimentos tivessem como base as suas leituras. Os textos de Fernando Pessoa sobre ocultismo relacionam-se muito claramente com as organizações esotéricas da filiação Golden Dawn, com evidente proximidade com as ordens thelémicas, o que se afigura natural dada a totalmente documentada relação com Aleister Crowley.
Parece, em todo o caso, de admitir que a iniciação de Pessoa – pois é exactamente dessa hipótese que estamos a falar – tenha ocorrido antes do seu primeiro contacto com Crowley, pois logo nas primeiras cartas tratam-se reciprocamente por frater.
- Escreveu Pessoa, para uma obra que se chamaria “Átrio”, discorrendo acerca das Ordens do Átrio, do Claustro e do Templo, organizadas segundo o esquema do Templo de Salomão:
“As Ordens do Átrio, que servem para ministrar os primeiros conhecimentos do que está oculto … Uma delas é a Maçonaria. Não direi qual é a outra. …
Seguem-se, passado o Transepto – ou regularmente, por iniciação plenária em qualquer das duas ordens citadas; ou irregularmente, por contacto directo com os Altos Iniciadores, e sem necessidade portanto de passar por qualquer dessas ordens – as chamadas Ordens do Claustro, ou Altas Ordens. …”
Sabermos já que em Janeiro de 1934 assinou como “irregular do transepto” “O. S. per”. Cruzando os dados que o próprio Pessoa nos deixou, quer isto dizer que considerava encontrar-se no ponto de passagem entre as Ordens do Átrio e as Ordens do Claustro, como irregular, isto é, por contacto directo com os Altos Iniciadores. O. S. seria, portanto, a Ordo Serpentis, a congregação dos iniciados da O. Solis.
Pessoa diz ter sido iniciado na aparentemente extinta Ordem Templária de Portugal. Tudo considerado, arrisco dizer que o poeta integrou, iniciaticamente a Argenteum Astrum pois esta permite iniciações individuais, sem relação comunitária, ao contrário da outra grande organização thelémica, a Ordo Templi Orientis. Bem sei que há muito a quem repugne este nível de relação entre Pessoa e as organizações, à data, lideradas por Aleister Crowley, mas é para esta conclusão que todos os indícios apontam.
Terminemos, uma vez mais, com palavras de Fernando Pessoa:
“Tudo é um. O Satânico é tão-somente a materialização do divino. A magia é uma só; a magia negra não é mais que a magia branca feita materialmente. (...) Se conhecermos os processos da magia negra e os interpretarmos como símbolo, chegaremos ao conhecimento dos processos da magia branca.”
“Há muitas Cabalas e dificilmente acreditaremos ser possível obter a união com Deus, seja o que for que por tal se entenda, a menos que estejamos familiarizados com o alfabeto hebreu.
(…)
O facto, no entanto, é que, qualquer que seja o caminho tomado, não deve ser antes de que os graus preparatórios, os graus de neófito tenham sido atravessados. O Misticismo busca transcender o intelecto (por intuição). A Magia a transcender o intelecto pelo poder; a Gnose, a transcender o intelecto por um intelecto superior.
(…)
A vantagem do caminho gnóstico é haver menos tentação de atingir o intelecto superior sem passar pelo inferior – já que ambos são intelecto e há uma diferença de quantidade entre um e outro – do que nos caminhos místico e mágico, onde há uma diferença de qualidade, não de quantidade, entre emoções e intelecto, entre a vontade e o intelecto.”
Esta é, como se disse, uma investigação ainda em curso, acerca de um objecto particularmente difícil, dado o seu elevado grau de imprecisão, pese embora a diversidade de fontes disponíveis. Também nesse sentido, parece-nos notável a síntese de Richard Zenith, que qualifica o poeta, no que importa à nossa temática de hoje, como “o esotérico ambíguo”.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2009
Pedro Basto de Almeida