Orador Prof Jose Marques
Todos os homens desejam de um ou outro modo a imortalidade, transcenderem a parca existência dos seus corpos perecíveis, colocarem-se para além dos limites naturais da morte e da destruição.
Ora o amor não é mais do que um dos modos privilegiados de o conseguirem.
É esta asserção que irei tentar demonstrar a que junto uma outra: O amor ao invés de ser sinónimo da nossa excelência é originário no carácter híbrido dos homens e consequentemente na sua incompletude.
São estas duas estranhas teses que irei desenvolver a partir do comentário ao belíssimo texto de Platão em forma de diálogo: O Banquete ou Simpósio, como o título sugere a acção decorre num Banquete que o dramaturgo Ágaton oferece em sua casa após haver vencido uma competição teatral.
Estes banquetes eram frequentes na época e poderiam degenerar em orgia ou em alguns casos, como o presente, serem palco de conversas e discussões elevadas sobre um qualquer tema de cariz estético, filosófico ou político.
Eram eventos frequentes e reuniam a nata da intelectualidade ateniense em debates tão informais quanto elevados.
Intervêm Apolodoro, Sócrates, Aristodemo, o autor de comédias Aristófanes, Erixímaco; o médico, o célebre Fedro e o celebérrimo e controverso Alcibíades.
Chegam os convivas que a convite do dono da casa se acomodam sendo dadas instruções aos escravos para os servirem como quiserem, na condição de receberem os elogios destes.
Estes banquetes eram acompanhados de dançarinas e tocadoras de flauta que animavam as reuniões e em alguns casos se misturavam com os convivas quando estes bem bebidos se dispunham a darem largas à satisfação dos instintos.
Neste caso, os serviços destas personagens são dispensados, o que se justifica por duas razões: Primeira, os participantes deste banquete haviam estado numa reunião semelhante no dia anterior estavam saciados e até ressacados. Por outro lado, há uma intenção clara de imprimir um cunho de seriedade e de elevação a esta reunião.
Por sugestão de Ágaton o tema a ser debatido é o Amor sendo cada um responsável por proferir os melhores discursos que possa sobre tão estimulante tema.
O autor teatral justifica a sua escolha por ser tão ávara a produção literárias em honra deste tão poderoso e antigo deus. (Ainda não havia nascido o grande Ovídio)
Fedro, o primeiro a intervir, ilustra o seu propósito de modo bem eloquente: “...eu próprio já tive a ocasião de ler uma obra de um certo sábio onde o sal era exaltado até às nuvens em razão da sua utilidade...Quanto ao Amor verás que até ao dia de hoje nenhum homem se dignou dirigir-lhe um canto condigno.”
A isto curiosamente, Sócrates responde afirmando que nada mais conhece que não seja de amor, ele que dizia nada saber.
O primeiro discurso será de Fedro, como já o referimos.
Começa por referir que “o Amor era um grande deus, um deus na verdade admirável aos olhos dos homens e também dos deuses, por muitos e variados motivos entre os quais avultava a sua origem”.
.....” A sua dignidade deve-se ao facto de ser o mais antigo entre os deuses... Hesíodo afirma que primeiro existiu o Caos e depois a terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe e Eros o mais belo entre os deuses imortais, que amolece os membros e no peito de todos os homens e deuses domina o espírito e vontade esclarecida” (Teogonia)
“ Também Parménides alude à geração, pensou primeiro no amor antes de todos os deuses”
E assim fica esclarecido que o amor é o “ deus mais antigo venerável, sendo como tal, aquele que nos traz maiores benefícios.”
Fedro continua a sua argumentação num sentido muito interessante; “ os homens, aqueles que se esforçam por viver uma vida bela, é necessário que considerem que nem a nobreza do parentesco, nem as honras nem o dinheiro, nem nenhuma outra coisa são capazes de inspirarem actos tão belos como o amor.”
Partindo do pressuposto que a infâmia que recai sobre as acções vis e a glória que cobre as acções belas, são motivadoras das boas acções tanto de indivíduo como de um Estado Fedro afirma que “se alguém praticar acções censuráveis em público ou receber injúrias de alguém , não se defendendo por cobardia à vista do pai, ou dos amigos, sofrerá tanto como na presença do ser amado.”
Assim os amantes só podem ter um comportamento admirável, em tudo o que façam à vista do amado, pois nada lhe será mais doloroso que a vergonha e a infâmia face ao ser amado. É por essa razão que tal homem não desertará das fileiras e será impedido pelo amor a largar as armas e fugir face ao amado. Que admirável será o ser que ama. Tal como Alceste que por amor do companheiro se dispõe a morrer em vez dele, provocando tal admiração entre os deuses que estes não hesitam em fazer que a sua alma retorne do Hades, reino dos mortos como recompensa da sua bravura.
Depois deste admirável discurso é a vez Pausânias que contesta a singeleza conceptual proposta por Fedro, afirmando que o deus do Amor não é um único, mas sim vários e nem todos são igualmente dignos de elogios, Só a espécie de amor que impele a amar nobremente, merece a nossa consideração. É assim estabelecida a relação entre Eros e aretê, virtude.
Pausânias distingue entre o amor vulgar, protagonizado pela Afrodite popular, em que o desejo visa os corpos e não as almas. No início desta conversa chamámos a atenção para o carácter transcendente e imortal do amor ao invés da precaridade do que vive corporeamente. Se o que se persegue é a imortalidade está explicada a razão da distinção. Todos sabemos por experiência própria como o tempo, as doenças e os vícios podem destruir a beleza do corpo, tornando-o decadente e fátuo. Então há que destacar outro tipo de amor mais perene e desta feita dirigido para as almas, para o espírito, que na opinião do locutor não perecem, mantendo-se inalteráveis.
De resto estes dois tipos de amor marcam os dois tipos de comportamento amoroso: O primeiro próprio dos espíritos mais vulgares e grosseiros, só se interessa por seres destituídos de inteligência, pois aqui vale o menor esforço e a satisfação imediata dos sentidos. Assim o investimento é fortuito e débil, como fugaz é o desejo e a sua consumação.
Bem diferente é esse outro tipo de amor, ligada à deusa celeste, Úrana, em que busca um amor mais puro e sobretudo sólido, capaz de resistir à degradação dos corpos, pois é o espírito que é o verdadeiro objecto.
Pausânias conclui: “ O amor não tem uma natureza simples, bela ou feia em si mesma; mas realizada com beleza torna-se bela, e com vileza torna-se aviltante; ora, realizá-la com vileza é conceder favores a alguém indigno e realizá-lo de maneira bela é conceder favores a um homem de bem.”
Chega a vez de Eraxímaco
Concorda com a distinção de Pausânias, no entanto estribado na sua experiência de médico estende a noção de amor a todas as coisas vivas, animais e plantas. Nomeadamente os enormes sacrifícios que os progenitores fazem pelas suas crias, mesmo em situações limite, com o fito de perpetuar a espécie no desafio à perenidade tantas vezes já referida.
Mas na arte médica também se articularão as influências do amor. Já não falando da atitude sumamente generosa que consiste em curar e preservar a vida de outrem, por parte de quem faz o juramento de Hipócrates, a dimensão amorosa penetra no âmago da arte médica helénica. Na verdade a medicina era para os gregos a preservação do equilíbrio dos elementos do corpo e da alma.
“ O que Pausânias dizia, que era belo agradar aos homens dignos, e, aos desregrados, vergonhoso, o mesmo se aplica aos corpos: é belo e deve manter-se e favorecer os elementos sãos e belos em cada corpo ( e a isto se chama medicina)enquanto aos maus aqueles que provocam a doença, é mau ceder, havendo obrigação de contrariá-los.... Precisamente a medicina consiste na ciência dos fenómenos do amor no corpo relativos à repleção e à vacuidade; quem saiba neles distinguir o bom e o mau amor é precisamente um bom médico.”
Esse bom médico, fiel à tradição médica helénica deve saber “ criar amizade entre os elementos mais hostis do corpo e levá-los a amarem-se; o frio e o quente, o seco e o húmido, o amargo ao doce, etc.
É interessante verificar que a maioria das doenças era, na convicção daqueles tempos, provocadas por desequilíbrios entre estes e outros elementos. Competia ao médico evitar essas rupturas, amorosas na harmonia.
Eraxímaco estende a influência do amor a outras artes, como a agricultura e ginástica.
Citando Heraclito fá-lo surgir na actividade musical, já que elementos inicialmente discordantes como o agudo e o grave, acabam por se conciliar e harmonizar na música.
O discurso do médico extravasa agora para os homens ao afirmar que é nossa obrigação proteger os moderados, assegurar o seu amor no sentido de os tornar ainda melhores aos que o não são, tal é o amor superior da Musa Urânia a que se opõe a Musa popular, Polímnia.
Mais uma vez a ligação do amor a uma lógica de virtude, neste caso inserida na dimensão da justa medida, fonte de prazer. No amor, tal como na gastronomia, dever-se-á procurar o prazer sem excesso. Como explicará muito depois Freud, a busca desmedida do prazer conduzia frequentemente à aniquilação.
Chega a vez do célebre autor de comédias, Aristófanes, falar, que começa por dizer que “os homens não suspeitam nem de longe os efeitos do amor, senão consagrar-lhe-iam os templos mais sumptuosos e oferecer-lhe-iam os sacrifícios mais de maior valia”
Aristófanes conquista a ênfase do auditório ao contar o mito da origem do amor como sendo o irresistível impulso que leva os homens a buscarem a sua outra metade, após os deuses irritados com a perfeição e poder dos antepassados dos homens; os hermafroditas os haverem “partido ao meio”, já que estes seres andróginos eram dotados de duas faces opostas e quatro pares de membros, assim como de dois sexos, “ com as costas e os flancos arredondados e em círculo” caminhando direitos e nos dois sentidos ou às cambalhotas quando tinham de vencer rapidamente uma dada distância..
“ Ora estes homens eram dotados de terrível força resistência e alimentavam planos ambiciosos, pelo que começaram a atentar contra os deuses”( 190 b) pelo que estes os separaram no sentido de diminuírem o seu poder sem terem que os exterminar.
Ora quando a forma natural se achou dividida em duas, cada metade com saudades da sua outra metade... não mais aspirava senão em fundir-se num só. (191 b)
Então o amor mais não é do que perseguir a metade que nos pertenceu e da qual sofremos de intensa falta.
Cada um de nós não passa de uma téssera, e é a sua própria téssera ou metade que cada um de nós procura infatigavelmente.
“ Em consequência todos os que são provenientes de um ser misto, procuram o ser do sexo oposto, podendo ocorrer que se forem provenientes de um único ser feminino se inclinem para as mulheres e para os homens se forem provenientes de um ser masculino
Veja-se como Aristófanes explica não só o amor como a raiz da homossexualidade quer feminina quer masculina.
Em 193 a Aristófanes preludia a tese de Sócrates ao afirmar que a força e a natureza do amor reside afinal da nossa incompletude, “ cada um de nós formava um todo; ora é essa aspiração ao todo a que chamamos amor. Se dantes éramos completos, estamos agora reduzidos à dispersão.
Na verdade e talvez surpreendentemente Sócrates quando inicia o seu discurso reserva duas atitudes originais:
Em primeiro lugar coloca uma mulher, uma sacerdotisa a falar de amor por ele e em segundo lugar na linha de Aristófanes vai caracterizar a natureza do amor como a mais eloquente prova na nossa relativa imperfeição.
Esta situação ainda será remediada por Ágaton que elogia o amor como possuindo uma natureza bondosa, sendo os seus dons decorrentes dessa natureza. (196 a)” o amor ....se move e habita sobre o que de mais suave existe, afastando-se do que é áspero e fero.... só quando encontra um sítio adornado de flores ele pousa e se instala” É belo e consequentemente é bom.
Ora estas duas intervenções vem a calhar pois Sócrates vai dar-lhes grande utilidade na lógica do seu discurso
Em 197 e, afirma Ágaton, “ é ele o amor que apaga em nós a ideia de sermos estranhos uns aos outros e nos comunica um sentimento de familiaridade através de reuniões como esta... abrindo, por um lado as vias à delicadeza, fechando-os por outro à rudeza, liberal em conceder favores e incapaz de malquerenças; amável e alegre contemplado por sábios, admirado por deuses, objecto de inveja para os que o não o logram e para os que o partilham é pai das delícias, da doçura e do requinte... propício aos bons, desatento aos maus.”
Veremos o uso que o filósofo dará a estas duas visões tão radicalmente diversas.
Sócrates logo em 200b chama a nossa atenção para o facto de amor ser o desejo daquilo que se ama. Ora se amamos desejamos e se desejamos não o temos, pois que só podemos desejar o que não possuímos, muito embora o conheçamos o suficiente para o possuir. Ora como admitirá Ágaton o amor é acima de tudo o amor do Bem e não do vil, o que parece irresistivelmente demonstrar que o não o possuímos pois só desejamos o que afinal ainda não temos. Ora como o amor do Belo é o amor do Bem, tal significa que estamos tão desprovidos de um como do outro e por isso amamos ambos.
É a partir destas duas premissas dadas por Aristófanes e Ágaton que se torna plausível a estranha natureza híbrida do amor, segundo a narrativa de Diotima,. Em Mantineia.
Quando Sócrates lhe falou do amor como algo de belo e de excelso, a mulher refuta-o nos termos que Sócrates utilizou para contestar a visão idílica do jovem e talentoso Agaton.
O amor não poderia ser belo ou bom. Ao que Sócrates surpreendido responde : É então o amor feio e vil. Diotima responde-lhe:
“Cuidado com o que dizes... ou achas que por não ser belo, tem forçosamente de ser feio?”
A confusão de Sócrates não tem limites. Então como classificar como um deus algo que afinal não é vil nem bom, não sendo feio ou belo?
Diotima classifica o amor como algo de prodigioso, um génio, intermédio entre os homens e os deuses, pois que a sua origem assim o demonstra; 203 a e ss
Fruto do encontro entre o Engenho adormecido no banquete em honra de Afrodite, que cheio de hidromel jazia estirado nu e tentador para a pobre Pénia, a indigente que como era costume veio mendigar os restos do festim e que não desperdiça a sorte de conceber com o belo deus o filho que há muito desejava ter.
Assim se explica a natureza dual e contraditória do deus, “...descalço, sem morada, estirado sempre por terra sem ter nada que o cubra, é assim que dorme ao relento...”
Mas logo vem a herança do pai na ousadia na coragem e persistência na busca do que é bom e belo. Caçador temível, sempre a arquitectar qualquer armadilha, sedento de saber e inventivo, “a vida inteira passa filosofando este hábil feiticeiro, mago e sofista.”
O Amor é assim amante do belo e do bem contudo sem os possuir, passa a vida perseguindo-os, como um paciente predador até lograr capturar a sua presa.
O amor não possui o seu objecto, mas de algum modo já o possui já que o reconhece ao ponto de desejá-lo com toda a convicção do seu ser. É esse o carácter do amor em Platão:
Só amamos o que desejamos e só desejamos o que não temos, embora o tenhamos a ponto de o querermos mais. Eis a metáfora do homem que pela sua natureza é amante do que se julga privado: carinho, sabedoria, carícias etc.
Distinto portanto das pedras que não sentem falta de nada, tão pouco dos deuses a quem nada falta.
Está dada a resposta à fome de imortalidade e Absoluto que nutrimos desde a tenra infância. Isto é não sendo imortais, mas tendo a centelha de imortalidade em nós que nos impele a superarmo-nos na busca do que é imperecível, o bem e o belo são imutáveis, não engendrados na óptica de Platão, resta-nos conquistá-los.
Que nos resta a nós homens?
Platão deu a sua resposta, e nós?
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